marta alvim para o projeto jiu xian garden village na china
"Não esperava visitar a China tão cedo, embora sempre tivesse sentido uma atração genuína pelo Oriente. Esta atração, que é comum a muitos ocidentais, vinha também acompanhada por um profundo sentido de inércia, a inércia de quem sabe que está prestes a iniciar uma viagem maravilhosa e extenuante. Uma viagem aberta, exigente e intensa, onde nos sentimos despertos dia e noite, porque quando não estamos a observar, estamos a interiorizar, a tomar consciência, a reconstruir o eu, o que é outra forma de dizer que expandimos esta nossa base de dados chamada consciência e, consequentemente, mudamos. Mudamos um pouco. E quando voltamos, somos um pouco diferentes."
Marta Alvim
Realizadora de Cinema & Artista
Quando recebi o convite do meu amigo Gonçalo Leandro para desenvolver um projeto de Videoarte na residência de Jiùxiàn, na China, senti-me inquieta. Pensei: é agora, vou ter de acordar um pouco mais. E assim foi.
Nos dias seguintes, pesquisei a zona onde iria trabalhar. Achei que seria ideal permanecer algum tempo para poder instalar-me e conhecer uma área mais ampla do território chinês. Ainda não tinha uma ideia clara do que iria desenvolver em termos de trabalho, mas isso não me preocupava, porque sabia que, ao chegar, iria perceber o que tinha de fazer. Há sempre algo que se impõe naturalmente, algo que se apresenta a nós, e é sobre isso que precisamos de falar. Sempre acreditei que, através do trabalho de observação do confronto entre as nossas particularidades e a realidade, podemos alcançar o nível da linguagem universal, um pouco como Aristóteles, que afirmava ter encontrado o universal no particular, na essência das coisas.
Entrei e saí pela cidade de Xangai. Cerca de trinta dias passaram entre novembro e dezembro. No meio, ficou o sudoeste da China: as montanhas, Dàli, Lìjiāng, o Black Dragon Pool, o comércio de Yángshuò, o Tai Chi e, claro, Jiùxiàn, a residência.
Cheguei num dia gélido. Contrariamente às previsões meteorológicas que me levaram a comprar comprimidos contra a malária, a temperatura estava longe de ser tropical, mal chegando aos dez graus Celsius. A residência estava em pleno funcionamento, com os artistas a trabalhar nos campos, em áreas destinadas a projetos de Land Art. Todos usavam umas calças quentes aos quadrados que tinham comprado num mercado da aldeia. Eram um tipo de calças multifunções, usadas tanto para trabalhar como para ir à cidade, vestidas sobre outras roupas, tornando-se parte do código visual da residência, e qualquer habitante local conseguia distinguir um artista residente de outro estrangeiro. Não cheguei a tempo de comprar as calças aos quadrados, mas quando o frio piorou, a Maria Coustols, artista e amiga que qualquer pessoa gostaria de ter, emprestou-me as suas, que vesti de imediato, embora tenha vindo a descobrir que eram calças de pijama.
Por opção, a minha estadia na residência duraria cerca de dez dias. Sentia que não tinha tempo a perder e queria começar rapidamente a filmar aquele lugar que me inspirava com o seu enigma. No dia seguinte, pedi a um guia que me levasse ao topo de uma montanha e preparei a câmara, o tripé e os cartões de memória.
A terra tinha uma cor quente e havia bambus gigantes que oscilavam com a energia do vento. Eu, influenciada pelo poder do inconsciente coletivo, imaginava-me no topo das árvores, a balançar no vazio do céu, com os pés apoiados em ramos finos e flexíveis, oscilando pela névoa, pelo branco húmido e silencioso.
Cheirava a fim de tarde, com o fumo a erguer-se da aldeia. O sol já descia e eu aproximava-me do meu destino. Um novo espetro de luz ligava as montanhas numa única silhueta. Na base, ainda conseguia distinguir os contornos dos telhados Ming.
No topo, havia apenas silêncio. Silêncio diante de mim, que permanecia perplexa, com o olhar fixo na paisagem que se estendia diante dos meus olhos.
Fiz toda esta viagem acompanhada pelo meu marido Vasco que, além de ser um excelente assistente de realização, foi o companheiro de viagem perfeito. Agradeço-lhe o apoio. Agradeço também ao Gonçalo Leandro pelo convite e à Maria e ao Frederic Coustols pela iniciativa. Gostaria ainda de dizer que, em todos os artistas que participaram nesta residência, reconheço o espírito de trabalho em equipa, a camaradagem e a grande dedicação ao projeto.
sobre a artista
Marta Alvim, nascida em 1979, é artista e realizadora portuguesa.
Formou-se na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, em 2002, com uma especialização de mestrado em Cinema.
O seu trabalho reflete especificidades e convergências entre práticas artísticas do Novo Cinema e da Arte Contemporânea. Através do vídeo, da instalação e da fotografia, explora práticas artísticas e os seus propósitos críticos. Nos últimos quatro anos, participou em programas de residências artísticas em França, China e Espanha.
Um dos seus filmes experimentais recebeu o Remy Silver Award no festival de cinema independente WorldFest Houston, nos Estados Unidos.
Até agora, o trabalho da Marta tem abordado temas como perceção, sentido de realidade, consciência, identidade e sociedade.
A Universidade de Lisboa (Ciências) e o New Media Lab – Mideciant, da Universidade de Castilla La Mancha, em Espanha, apoiam parte do seu trabalho atual.